quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O VALE DOS IRMÃOS PARTE 2

*Invasif* já se colocara de lado mesmo antes da aprovação do documento: "Estarei eu ao lado dos irmãos, é fato. Mas nao serei eu a compactuar com o princípio da infidelidade...". Tudo que lhe era possível fazer, foi feito. Restava, como pensava *Professof*, apenas o comprometimento de cada um: "Não é pelo fato de fazermos determinadas opções que sejamos traíras ou que descumpriremos o princípio da fidelidade. Pelo contrário, isso tudo serve ao efetivo da inveja. O documento atesta a inveja e a falta de perspectiva do grupo!".
*Agitaf* concordou plenamente com a opinião de *Professof* que entendia que tudo que aconteceu, desde a procura pela produção do documento por parte de *Ranzinzaf*, como a aprovação do mesmo, não passava de falta de perspectiva por parte de *Deprimif* e de *Coitadof*, assim como inveja: "*Deprimif* e *Coitadof * se entregaram aos impulsos da emoção, e barata por sinal, ao invés de tomarem a razão para compreender o que estavam fazendo!".
E assim cada um resolveu pelo seu distanciamento do Vale dos Irmãos, como uma forma de reflexão pelo ocorrido. E seria melhor assim.
*Ranzinzaf* mantinha o posto de pé, assim como a união (mesmo que conflituosa), entre os habitantes do Vale. *Deprimif * e *Coitadof * permaneceram unidos e se aproveitando de certa fama momentânea. Era como se em alguns momentos sentissem um impulso de vitória de uma batalha que, na verdade, não houve vencedores. Para alguns habitantes, aquilo soava mal já que em pouco tempo *Deprimif* e *Coitadof*  dariam conta de um certo vazio. Não alcançaram tal posto, superior ou de promoção. Pelo contrário, sentiram uma vitória sobre *Invasif*. Uma espada da justiça direcionada ao objetivo errado e por impulsos egóicos. Seria necessário o tempo para lhes ensinar a verdadeira tarefa a ser cumprida.
Para além deles, *Agitaf *, o outro *irmão fiel*, cavalgava pelo Vale das Sombras, tendo em dúvida o caminho escolhido. Sabia da credibilidade e da confiança restabelecida nos habitantes quando foi contar o fato a *Invasif*, mas não sabia se isso havia acarretado uma rixa entre os *irmãos*. Era deveras perigoso e, então, precisava refletir em outros ares e sozinho. Mergulhava em pensamentos sombrios, assim como também de esperança. Era como se "os fins tivessem justificado os meios..."; e por um tempo isso bastou.
*Fugitif *se sentia desiludido, embora defendesse a fidelidade como princípio primordial. Desiludira em vista do documento e da aprovação. Teve verdadeira repulsa por tal "gesto bastardo" e quis se retirar. Não faria como *Agitaf* que procurava elevar os pensamentos, mas orientara-se na direção de outro caminho que seguisse talvez sua própria fidelidade ou que não envolvesse os outros. Precisava disso, era seu carma e sua sina. Dava a volta ao Vale como certa, mas só quando cumprisse sua própria missão. E assim foi ao Reino do Amanhã em busca de seu destino!
Naquele momento, de inseguranças e incertezas, restava aos habitantes do Vale apenas o silêncio. Ninguém tocou os sinos dos anciãos. Pelo contrário, reinava a mais profunda meditação individual. Cada um retirava-se em seu canto e em silêncio. Não se podia prever os danos dos documentos. Diz-se por aí que mudanças fazem bem, que fazem nascer novos horizontes. Mas o Vale estava com receio! Oa habitantes tinham a sensação de terem votado por outros motivos que não o próprio bem. O silêncio era avassalador!
*Fugitif * pensava em uma coisa e lhe aconteceram outras. Sentia-se como se algo novo tivesse que acontecer. E isso não passava pelo Vale. Precisava descobrir sozinho.
*Coitadof * também se afastou. Deu um tempo na parceria com *Deprimif* e foi refletir. Mesmo assim, não deixou de receber e mandar noticias ao *irmão fiel*.
*Deprimif * fez a vez de coitado. Manteve-se isolado e partilhando de batalhas fracassadas. Não sabia que rumo seguir e nem pra onde. Preferiu seguir aos outros, embora soubesse que não levaria em nada.
Por opção estava lá *Fugitif* no Reino do Amanhã. Esperava encontrar-se com *Agitaf*. Nem que por um breve momento. Mas isso não aconteceu. *Agitaf* estava adiantado, embora no Vale das Sombras, lugar ainda mais distante que o Reino do Amanhã.
Em seu lugar e de costume, ficou *Invasif*, no aguardo do novo panorama que se formava. A vida dos habitantes do Vale ou mesmo dos *irmãos fiéis* já não passava diretamente por ele, o que causava frustração. Não tinha mais o controle das coisas ou das pessoas e entendia que isso era necessário, quer dizer- a autonomia, mas tinha receio, como um pai que precisa deixar o filho sair de casa e seguir seu caminho.
Pode se dizer que os *irmãos fiéis* entraram em colapso com a retirada de *Invasif*, ou ao menos entraram em estado de estranhamento. É o que se diz! E a vida dos habitantes do Vale seguiu de vento sem popa, como se nessa altura do campeonato tivesse que prevalecer um certo 'ajeitamento' individual.
Traçava-se no alto das montanhas uma nova era de possíveis transformações e interesses múltiplos. Não se sabe que resultado surgiria daí e nem qual seria o novo caminho. Mas certo é que nada será como antes! Resta a esperança de um bom lugar para todos.
Mas, lá com seus botões, *Invasif*, muito pensativo, sabia do esmagamento futuro dos fracos pelos fortes. Ou seja, os novos tempos trariam a separação e os princípios da união harmoniosa dos habitantes do Vale já não existiria mais. "Agora, mais do que nunca, os fortes estabelecerão as novas regras e haverá distinção. Será daí, dos que passam para o lado de cá, ou seja, para o lado dos fortes, que acontecerão as principais mudanças. Quem não conseguir chegar até lá que se despeça da vida! É uma escolha de todos e não uma imposição de um... Que comecem os novos tempos e boa escolha a todos!".

MLHSM

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O VALE DOS IRMÃOS

No Vale dos Irmãos, cada um tem uma função específica.
*Ranzizaf* é quem protege a manada, quem aconselha e quem se mantém de longe deixando que cada um tome o seu caminho em segurança. É também aquele que não abre mão de um conselho. É conselho daqui, conselho de lá, conselho pra todo lado, sem que nem ao menos lhe tenham pedido. Organiza o grupo com punhos de ferro e faz com que todos funcionem conforme suas regras.
*Fofocaf* é sua fiel escudeira. É ela quem administra os problemas de *Ranzinzaf* para que ele possa se dedicar a cuidar dos outros. Costuma cuidar também da saúde física do chefe. *Fofocaf* sabe da vida de todo mundo e *Ranzinzaf* lhe é grato por isso. Ela o mantém atualizado quando alguma coisa foge do lugar.
*Invasif* é o cuidador mental de *Ranzinzaf*. Ele é o responsável por promover a saúde mental e a serenidade de *Ranzinzaf*. Mantém-no atualizado com o mundo, para além dos conselhos de *Fofocaf* que apenas lhe diz dos fenômenos internos. *Invasif* também faz as vias de promover a organização da manada, na ausência de *Ranzinzaf*.
Tem-se ainda *Deprimif*, *Agitaf* e *Coitadof*, os *irmãos fiéis*. *Invasif* não cansa de atormentá-los e faz de tudo para que eles progridam na vida como ele. Deseja que os *irmãos fiéis* sejam um dia tão grandes quanto ele, fruto do trabalho e da união do grupo, sem reclamações.
Dos três *irmãos*, *Deprimif* é o que mais reclama e o que menos age. Reclama de tudo e encontra força pra fazer algo diferente apenas quando se compara a *Invasif*.
*Coitadof* é também quem reclama, mas o faz diferente de *Deprimif*. *Coitadof* culpa sempre as circunstâncias: "Não me é possível caminhar pra frente, porque há sempre pedras pelo caminho... Oh, situação conflituosa! Terei que recorrer aos experientes para me ajudar".
Já *Agitaf* afunda em seu próprio desespero. Quer alcançar o posto de *Invasif* e luta por isso, mas sabe que ainda não se encontra preparado. Precisa passar por outras provas no Vale, que *Invasif* também teve que percorrer. Para isso, *Agitaf* conta com o apoio de sua mais nova escolhida e incentivadora.
No Vale há também aqueles que vigiam a estrutura de longe, por cima das torres e que não são menos importantes na história. Trata-se de *Fugitif* que prefere proteger o Vale do seu jeito, sem qualquer interferência ou opinião; e *Professof*, o mais organizado e articulado de todo o Vale, principal postulante a substituir *Invasif*. *Professof* é, inclusive, o mais próximo de *Invasif*, com quem mantém comunicação aberta e franca. Chegam a se estranhar muitas vezes, mas não deixam de colocar suas rabiscadas considerações.
*Fugitif* não é como os outros. Prefere se manter distante, embora seja fiel e participativo. Não se mete quando as coisas descambam para a confusão e é conhecido por seus toques sarcásticos.
O Vale dos Irmãos mantém-se sereno e organizado, em que cada um, na sua convicta função, exerce  seu cargo com maestria. Em nada se distinguem de outras organizações ou sociedades, apenas no quesito fidelidade. Uma coisa que não se pode cobrar dos habitantes do Vale é que não são fiéis uns aos outros. Sempre que um encontra-se na partilha de uma guerra, ou mesmo na eminência de tal, o exército dos irmãos intervém imediatamente. Isso, às vezes, causa espanto e admiração do líder da manada - *Ranzinzaf* - que teme que algum dia toda essa estrutura sólida e concreta chegue a ruir com a traição de um deles. Para *Ranzinzaf*, uma coluna pode tombar ou apenas balançar a qualquer momento e se isso acontecer todo o Vale irá caminhar em trevas para sempre.
*Professof* é o mais coerente de todos e, como tal, discorda do chefe: "Se uma telha que seja vier a oscilar, outra será colocada em seu posto imediatamente!".
*Fugitif* compartilha da mesma opinião de *Professof*, mas não é capaz de prever o futuro com tamanha veemência.
É comum em muitos casos que as discussões no Vale adquiram aspecto de verdadeira rudeza e incongruência de pensamentos. Os *irmãos fiéis* são os que mais se mantém em cima do muro nessas horas, pois receiam se comprometerem com alguém. Mesmo assim, *Agitaf* faz questão de se destacar entre eles, ainda que não lhe seja possível discernir das opiniões com muita coerência.
E assim a vida no Vale dos Irmãos segue de vento em popa. Cada um tendo para si seu destino, acreditando nele e defendendo-o, mesmo que o desfecho não seja nada razoável. As funções são delegadas e exercidas com vigor, e a harmonia ronda o Vale com sua estrutura perplexa e familiar.

***

Certa feita, quando na ocasião de uma tarefa a ser cumprida no Vale por *Coitadof*, um fato causou espanto. *Coitadof* fôra convocado a conduzir um plano para além de suas habilidades e precisou contar com o apoio dos *irmãos fiéis*. Acontece que *Coitadof* enfrentava problemas com os *irmãos* por se manter mais distante e não se abrir tanto, preferindo a escuridão e o isolamento. Os *irmãos*, indignados com essa postura, preferiam manter-se em segredo e esperar até que *Coitadof * os acessasse. Mas é claro que tudo aquilo não passaria despercebido e por mais impressionante que fosse, apareceria no momento menos imaginável possível. E foi o que aconteceu!
O prazo de *Coitadof *era curto e ele foi correndo apresentar seu novo projeto aos *irmãos fiéis*. Precisava urgentemente de auxílio.
Chegando lá, e com toda expectativa decorrida dos últimos acontecimentos, encontrou os *irmãos* determinados a lhe escutar.
  - O que te faz nos procurar tão tarde da noite, *Coitadof*? E porque está tão nervoso? - perguntou *Invasif* que estava com os *irmãos*.
  - Preciso produzir um documento que é tão importante, importantíssimo pra ser mais exato, mas que pode causar impactos de imensa proporção ao Vale dos Irmãos - destacou apavorado.
  - E do que se trata o documento? - indagou *Agitaf*.
  - Trata-se da nossa estrutura e de como a comunidade se apresenta aos outros, como nós entendemos nossa relação com o mundo e com os outros.
  - E quem te ordenou a tarefa? - *Deprimif* demonstrava seu interesse.
  - O próprio *Ranzinzaf* em pessoa!!!
  - Se é assim, então faça! Se ele ordenou... - disse *Invasif*.
  - O problema é que não sei se estou disposto a discordar do documento, mas creio que serei eu considerado o culpado desse mal entendido! Não discordo das cláusulas, que colocam os outros, os que pensam diferente de nós, como inimigos; mas entendo a maldição que pode cair sobre o Vale. Trata-se de uma tarefa que não tenho capacidade de exercer sozinho, principalmente porque serei eu o mentor maligno!
  - Então se é isso, coloque-se contrário às ordens de *Ranzinzaf* e diga a ele que encaminhe a outro - respondeu *Invasif*.
  - Não posso fazer isso, não mesmo! Se o fizer não serei eu a ser o próximo postulante a um cargo superior. E o problema maior é que concordo, embora em partes. Não quero me comprometer. Tentarei outra maneira. Pelo visto não podem me ajudar...
E abatido, *Coitadof* decidiu procurar quem lhe fosse mais complasivo com a situação.
*Coitadof* desejava, na verdade, que alguém pudesse fazer o trabalho por ele ou ao menos se colocasse responsável, tanto quanto ele, na assinatura do documento. Essa era, aliás, uma de suas principais características: a partilha do insucesso!
Na calada da noite do dia seguinte, *Coitadof*, já retirado em seus domínios, recebeu a visita de *Deprimif* e *Agitaf*:
  - Colocamos *Fugitif* a par de seu assunto inescrupuloso, mas ele se negou a participar. Não por uma questão de integridade, é bom que se diga, mas por entender que não há afinidade entre "bestiais", que somos nós, e sua habilidade intelectual superior. Assim, preferimos vir até você e sem o consentimento de *Invasif*, já que ele parece disposto a deixá-lo na angústia. O que nos propõe, para ajudá-lo? - acrescentou *Deprimif*.
  - Quero apenas uma ajuda para produzir o documento, como disse, mas não quero envolve-los a ponto de deixá-los em situação ruim.
  - Estamos com você, *Coitadof*. Mas nao concordo com essa iniciativa. Acho que estamos colocando *Invasif* fora do assunto e devemos manter o laço dos *irmãos* em harmonia - desconsiderou *Agitaf*.
  - Não devemos satisfação a *Invasif*!!! - disse *Deprimif* nervoso - E além do mais, ele não anda coerente com nossas idéias. Temos que nos unir a *Coitadof*. Poderíamos tentar *Fugitif* mais uma vez, mas não serei eu a convidar.
  - Vocês já tentaram *Professof*? - perguntou *Coitadof*.
  - Não! *Professof* é muito justo com essas coisas. Se ele desconfiar que isso possa levar a relação da comunidade a outro patamar, não participará conosco - disse *Agitaf* - E assim como ele, confesso que tenho medo de que isso seja uma traição.
  - Isso o que??? - *Coitadof* se espantou.
  - Produzir o documento sem colocarmos todos a par. Vocês estão excluindo *Invasif*, que sempre esteve do lado de vocês! - enfatizou *Agitaf* com uma certeza de quem não queria mais participar do imbróglio.
  - Se quiser ir embora, a hora é essa! Mas eu ficarei com *Coitadof* - disse *Deprimif*.
E *Agitaf* partiu sem nem ao menos olhar pra trás. Decidiu que contaria tudo a *Invasif*, mas de modo secreto e visando a continuidade dos preceitos dos *irmãos fiéis*. Entendia que o que estava em jogo era muito mais que o tratamento dos outros. Tratava-se dos princípios da fidelidade: "*Ranzinzaf* não daria a *Coitadof * a missão de destruir a relação com os outros. Acho que isso soa mais como um teste do que propriamente a produção de um documento" - pensou *Agitaf* enquanto caminhava ao encontro de *Invasif*.
Tempos depois, *Coitadof * e *Deprimif* foram mostrar orgulhosos o documento pronto para *Ranzinzaf*. *Ranzinzaf* estranhou a presença de *Deprimif* com *Coitadof*, pois apenas a este último foi entregue a tarefa. Mesmo assim relevou. Aquilo que estava feito, estava feito, e pelas mãos de quem quer que fosse.
O documento tratava de diminuir a proximidade e a intensidade da relação dos *irmãos fiéis*. Ou seja, a partir dali, os *irmãos* não mais poderiam tecer considerações uns aos outros de questões pessoais, mas apenas de assuntos derivados a vida no Vale dos Irmãos. Poderiam ser organizadas festas e comemorações, mas os habitantes do Vale não poderiam mais se referir a vida de ninguém, sem prévio pedido. A relação com os outros e entre os próprios habitantes tornaria-se "política", isto é, afim de preservar um afastamento íntimo. Isso manteria a comunidade numa relação "disfarçada", sem considerações pessoais, como a do próprio *Fugitif* que chamou os *irmãos* de "bestiais", e salvaguardando a relação administrativa ou profissional entre os habitantes, com o único objetivo de proteger o Vale dos Irmãos.
Ao ser anunciado por *Ranzinzaf* os propositivos de que tratam o novo documento, *Invasif* deu um salto pra frente, indignado:
  - Isso é um absurdo! Um grande absurdo! Não podemos levar em conta os argumentos citados neste documento. O que sempre nos uniu, diferente dos outros Vales, foi justamente a proximidade íntima e a abertura fraterna nos debates. Para cada problema surgido entre nós, esclareciamos entre os habitantes, esclareciamos entre os *irmãos* e isso nos preservava, nos distanciava dos outros maldizentes. A proximidade íntima, as iniciativas pessoais, os conselhos, são exatamente o que nos distingue dos outros que preferem manter-se individualizados, com suas vidas falsas e isoladas.
  - Não é de modo algum estranho que tal consideração venha da boca de *Invasif* que é quem mais se intromete na vida dos outros! - argumentou *Coitadof * - E tudo isso que você disse aí me parece nada mais que pura inveja! Inveja porque somos nós, *Deprimif* e eu, que fizemos! Quando alguma coisa não é de sua autoria ou de sua compreensão, você discorda! Sempre foi assim!
  - Mas isso... - disse *Invasif*.
  - Você sabe que sempre foi assim! Apenas o seu jeito é capaz de funcionar, de dar certo! O de mais ninguém presta! - rebateu.
  - Não vou mentir e dizer que não é assim. Vou dizer que penso que tenham razão, mas isso não justifica o documento. Pois, se é assim, o documento não é feito para o bem geral do Vale dos Irmãos, e sim direcionado a mim que faço comentários da vida pessoal dos outros.
  - Não, nada disso! É um documento nosso, produzido por *Deprimif* e eu, e em nada toca você - disse *Coitadof *.
  - E você, *Deprimif*, o que responde disso? Seu nome é constantemente citado.
  - Pra mim, os dois tem razão e o que o documento visa é assegurar o equilíbrio das partes - disse *Deprimif*, mais uma vez sem se comprometer.
  - Mas aí, em nada ajuda, pois não se posiciona, não faz escolhas, tens que perder se quiser ganhar algum dia - disse *Invasif* mais uma vez.
  - E não tem não! Estão vendo! Vêem! *Invasif* tenta manipular *Deprimif*. Este já se posicionou. Disse do equilíbrio e é só. Nem tudo na vida precisa se escolher - defendeu *Coitadof *.
Imediatamente ao comentário de *Coitadof *, muitos concordaram com a cabeça. Este debate, em plena praça pública, colocou *Invasif* em uma situação embaraçosa, já que é ele o líder substituto, ou "o direto-imediato" de *Ranzinzaf*. Sua figura caiu em desgraça, uma vez que *Coitadof * disse exatamente o que muitos gostariam de dizer e não tinham coragem. *Invasif* se viu derrotado e entendeu que aquilo poderia representar o fim do Vale. Em todo caso, não respondeu e deixou a comunidade votar conforme seu critério. Já não seria mais *Invasif* quem manteria a fraternidade de pé. Pelo contrário, todo o Vale decidiria o melhor.
*Ranzinzaf* abriu então as eleições imediatas e o povo logo escolheu: "Pela determinação de todos e o poder que me foi concedido, o documento, tal qual produzido por *Coitadof * e *Deprimif*, foi aprovado por maioria e entrará em vigor a partir de agora".
Enquanto os outros comemoravam, os olhares dirigiram-se pontualmente a *Invasif* que lamentou. *Fugitif* e *Professof* não comemoraram e entenderam a vitória de um lado e a derrota do outro. Tudo aquilo soava mais diretivo a *Invasif* do que propriamente uma opção democrática. É como se o sentimento de todos, por tudo aquilo que *Invasif * representa e o quanto os habitantes se indignam com isso, vencesse o processo. Era um recado direto de que *Invasif* ou outro que quisesse fazer o mesmo que ele, não mais poderiam sob pena de reclusão ou desprezo. *Ranzizaf* também entendeu os dois lados, mas só depois que lhe foi explicado.
Tudo caminhava para um novo paradigma no Vale dos Irmãos e o futuro que se seguirá é uma incógnita!

MLHSM

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CRÔNICAS DE TERAPIA: CASUALIDADE


Acordei naquela manhã com uma sensação estranha, uma tremenda dor de barriga. Tentei me lembrar de alguma coisa que pudesse ter comido, mas nada me veio a cabeça. Era uma sensação parecida com a minha primeira entrevista de emprego, há alguns dias, e que não deu em nada. Estava nervoso e sabia disso. Era o meu primeiro dia de terapia. Mas eu não tinha certeza se era esse mesmo o motivo da minha angústia.
Era a primeira vez que marcava um psicólogo na vida. Não fazia idéia no que estava me metendo. Achava estranho contar minha história para alguém que mal conhecia (ou não conhecia nada). Mas a questão é que meus problemas atingiram um patamar tão alto que senti a necessidade de procurar um especialista.
Levantei da cama por volta das 6 hs. Fazia tempo que não acordava tão cedo. Mal dormi. Encontrei a mesa do café pronta e arrumada. Tinha pão, queijo, manteiga, leite, café e biscoitos. Um monte de coisas! Pra falar a verdade, eu nem sabia que a minha família levantava tão cedo.
Comi e enquanto voltava para o meu quarto encontrei minha mãe como num susto, chegando da rua com uma sacola cheia de compras. Ela quis saber o motivo de eu estar de pé tão cedo, mas preferi não contar. Não queria que ela soubesse do meu destino já que enrolei tanto pra marcar uma terapia.
Rapidamente tomei um banho e me aprontei. Confesso que estava muito ansioso. Quase não pude me conter de tanto nervosismo. Fiquei pensando mil vezes no que iria dizer ao terapeuta. Não sabia se era pra contar minha vida toda, os atuais problemas ou esperar ele perguntar primeiro.
Recolhi minhas chaves e meus documentos e conferi o dinheiro da análise. (Teria que ser à vista!). Eu não queria perder mais tempo.
Enquanto dirigia, comecei a pensar num monte de  coisas que me aconteceram recentemente. Lembrei-me daquela menina do final de semana, que não tive coragem de me aproximar e que me arrependo amargamente. Também me veio a cabeça uma lembrança da minha ex-namorada no dia em que terminamos. Ela não aguentava mais a minha passividade e pôs fim a tudo. Eu nem briguei ou reagi e a coisa continou como no início: ela falando de nós e eu calado. Às vezes queria ser como os outros, pra frente, disposto... engraçado! Pra eles, parece que nada se perde...
Eu gostaria de estar ainda namorando com ela. Sinto tanta saudade que as vezes dá vontade de chorar. Nada me parecia tão necessário à terapia do que falar da minha inoperância com as pessoas e minha solidão interna.
Tem horas que penso que as coisas que acontecem comigo são casuais. E sinto uma oscilação de culpa; ora me sinto culpado realmente, ora acredito que haverão outras oportunidades. Não sou diferente dos outros, mas sempre tenho a impressão de que estou no caminho contrário.
Pouco antes de chegar a avenida que atravessa a rua do psicólogo, lembrei-me que havia esquecido um cheque da minha mãe pra depositar. Ainda faltavam alguns minutos, então escolhi voltar e buscar. Contornei pela mesma rua e retornei em sentido oposto. Tinha tempo e o trânsito era bom.
Assim que passei dois quarteirões não avistei o carro que vinha pela minha direita, desgovernado. Acabara de furar o sinal vermelho e vinha em alta velocidade na minha direção. Por um milésimo de segundo, senti apenas um estrondo e escutei o barulho de mil pedaços voando pelos ares. Em seguida não vi absolutamente mais nada e o lado direito do meu carro simplesmente desapareceu.
Havia rastros de lata e vidro por todos os lados da rua e o meu carro eram estilhaços no chão. O motorista saiu do carro apavorado e nervoso, esbravejando pra mim como se eu tivesse sido o culpado. E eu, pela resto que tinha de janela no meu carro, não escutei uma palavra sequer que ele dizia. Estava abalado, tenso e assustado e tinha o rastro da morte ainda dentro de mim.
O mundo me pareceu ter entrado em câmera lenta e eu apenas via um vulto exaltado do lado de fora. Por um instante me fiz uma pergunta que nunca mais esqueci na vida: "porque será que voltei?". Logo em seguida desmaiei profundamente!

MLHSM

sábado, 13 de setembro de 2014

CENAS


"Quero que meus olhos tirem fotos e que as palavras dêem o contorno exato" (anônimo).

Entro em casa pela porta da frente que dá acesso a sala. Suas paredes, marrom escura e branca, servem para realçar a moda do pequeno apartamento. O sofá claro faz contraste com a parede e a televisão dá o requinte da tecnologia. Almofadas coloridas jogadas pelos lados tornam o ambiente mais alegre e o móvel de madeira segue o tom marrom da parede. As plantas espalhadas pela sala indicam preocupação com a natureza e os espelhos de losango na parede branca ampliam o ambiente. Há um puf amarelo, mas é só enfeite. Chama a atenção a mesa de madeira pura que fica ao centro e que se estende e recua dependendo da ocasião.
Por todos os lados o que se ouve é um silêncio ensurdecedor que determina a paz inocente.
Pela porta da cozinha posso ver a pia de mármore e a geladeira branca que fica logo ao lado. Os azulejos são daqueles antigos, retrógrados, com desenhos de maçã estampados. Parece não haver ninguém na casa.
Pela porta da lavanderia, há a máquina de lavar, o tanque, armários e a entrada de um banheiro que sugere a presença de uma empregada. Ao lado um quartinho que serve como depósito de roupas e de materiais de limpeza.
Retornei pela cozinha e pela sala e me deparei com um cubículo de quatro portas: uma que dá para o banheiro principal, outra para o quarto principal, outra para o quarto de um bebê e a porta que entrei e que liga à sala.
Optei pelo quarto do bebê e vi o berço branco, a cômoda, armários e a cadeira de amamentar. Tudo branco, inclusive a parede e a tela atrás do berço e que tem um enorme galo em recorte e com luzes de led para iluminar sem precisar da luz principal. Realmente parece não haver ninguém na casa.
E agora que estou de frente para a porta do quarto principal, último cômodo da casa, ouço um gemido, bem ao fundo, arranhado e contínuo, como se fosse uma tosse seca abafada por um pano. E o gemido perpetua lenta e progressivamente até tornar-se um choro agudo, estridente e cheio de tristeza, mas que é capaz de tomar conta de todos os cantos da casa. A mesma casa que antes parecia tão sufocada de um silêncio invasor é agora surpreendida por um berreiro capaz de transformar sua estrutura apática e sem vida. Eis que em um instante a casa se transforma em outra. Em meio a sala, a cozinha, a lavanderia, os banheiros, o cubículo e os quartos surgem os mais diversos sons e sentimentos. O choro e o grito (choro-grito) parecem carregar na sonoridade o apelo por carinho e afeto de toda a humanidade. Tende a evocar a necessidade de amor de todo homem e de toda mulher da face da terra e perturbar a paz da alma dos mais quietos. É como se todas as crianças do mundo se unissem em uma só voz para evocar no máximo que apenas o amor é o caminho e mais nada.
Quanto a mim, resta correr e abafar em minh'alma a dor e o desespero. Porém, quando chego bem pertinho, consigo ver a criança, um bebê, na cama, agasalhado, mexendo braços e pernas e sacudindo-se inconsolavelmente num macacãozinho vermelho. Em questão de segundos, ele se acalma e é como se não houvesse aflição alguma e em lugar nenhum do mundo, a não ser a minha própria. Tudo cessou. A dor, o desespero, os gritos, o sofrimento, a humanidade, o choro. E do caos nasce um belo sorriso da imensa boca grande e desdentada. Os olhos brilham e a agitação volta, só que de paz em vez de dor. O foco do olhar é um só e se concentra atrás de mim, para além do meu campo de visão.
Posso dizer com precisão e sem titubear que nada é mais intenso e doce (ao mesmo tempo) que o amor (e tudo o mais que possa haver nisso) no fundo dos olhos de uma mãe apaixonada.

MLHSM

domingo, 31 de agosto de 2014

A LINGUAGEM DO BICO



Tem dia...
Que o Marcelinho só chora/ e sua mãe não sabe por que/ põe o bico e ora/ pra tentar esquecer. É um choro estridente/ escandaloso demais/ e o desespero latente/ toma conta dos pais. Pode ser por cocô/ ou pode ser a barriga/ e se for pela dor/ não adianta bico e cantiga. Pode ser também fome/ que o Marcelinho atesta/ e também pra essas horas/ não tem bico que presta. E se nada disso der certo/ e o Marcelinho chorar/ sem o bico por perto/ talvez queira brincar. Pode ser até sono/ e ele tente lutar/ ou talvez queira colo/ lugar bom para amar.

Marcelo Horta Mariano

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O BOM E O MAU CONSELHO



Pensemos por exemplos:

A começar pelo invejoso!
João dá um conselho a José.
Este conselho é realmente proveitoso para José, mas José sente inveja de João.
José sabe da qualidade e da validade do conselho e o quanto lhe pode fazer bem, mas prefere não seguir o conselho de João.
Pois segui-lo é como elevar João a um nível ainda maior que José que já sente inveja de João.
O que poderia ser um bom conselho torna-se mau por este motivo.

Passemos para o inferior!
Tem relação próxima com o invejoso.
João dá um conselho a José.
Mas José tem João como alguém inferior a ele, isto é, dotado de inteligência e de conhecimento inferiores.
Mesmo que o conselho de João lhe seja útil, José não irá segui-lo pelas divergências aferidas.
O conselho de João se torna novamente um mau conselho.
Acatá-lo seria, para José, condenar-lhe a inteligência e a superioridade em relação a João.

O terceiro é o igual!
João dá um conselho a José.
João e José estão em sintonia, ou seja, estão numa mesma situação ou próxima e tem afinidades parecidas ou igualitárias.
Como parte do mesmo contexto, sem distinções ou desequilíbrios, o conselho de João se torna valioso e plausível para José.
O conselho pode render, inclusive, trocas de conselhos entre eles.
Esta é uma situação mais considerável.

O quarto é o superior!
João dá um conselho a José.
José tem grande estima por João e considera que João tem qualidades superiores a ele para lhe aconselhar.
José prefere seguir o conselho de João e confiar em quem, a seu ver, entende mais que ele.
José se valerá da credibilidade conquistada por João.

Um conselho pode se valer de conceitos diferentes e depender, principalmente, de quem enuncia e da relação que se tem do outro. Mas, em todo caso, você conseguiu entender a conexão?

Marcelo Horta Mariano

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

DOIS POR UM E UM POR TODOS



Certo dia...
João e José resolveram fazer o mesmo investimento financeiro.
João estudou o investimento a fundo, pesquisou, leu, perguntou a economistas e empresários, dedicou-se a participar de fóruns de debates e chegou a assinar uma revista de economia para acompanhar o mercado.
Tinha a sorte decidida por ele e não por outro.
João previu o fracasso (e o possível sucesso), avaliou as perdas e prescreveu-lhe um plano B.
João sabia dos riscos. Previu isso, fez cálculos e investiu.

José também soube do tal investimento. Era o mesmo de João.
Considerava-o razoável e escutou amigos do trabalho, do bar e de sua convivência pessoal.
Todos indicavam o mesmo investimento, inclusive João, que era seu amigo.
O investimento era tido como justo e seguro.
José, então, investiu o mesmo dinheiro que o amigo João.

Em pouco tempo, João recuperou o investido e obteve lucro.
José perdeu.
Não conseguiu nem mesmo recuperar o investimento inicial.
José culpou a sorte e o amigo João pelo fracasso.
João, por sua vez, não conseguiu entender o que havia acontecido com José.
Se o valor investido era o mesmo e o investimento no mesmo lugar, porque João obteve lucro e José não?
Muitos chegaram a dizer que tudo se deveu pelo estudo e pelo esforço de João.
Mas José não entendeu da mesma forma. Culpou o seu azar e o fato de João ter sempre sorte. Também acreditou que João não lhe oferecera as dicas certas e escondeu alguma coisa para seu próprio ganho.

Mas, afinal de contas, o que aconteceu?

Marcelo Luis Horta Silva Mariano